Por ascom-apacc
A batalha contra a intensa utilização de
agrotóxicos no país ganhou também o Congresso Nacional. No final de 2011, a
Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados aprovou um
relatório que revela os riscos desses venenos para a saúde humana e ambiental.
Após mais de seis meses de trabalho de investigação
e de escuta de todos os setores envolvidos na produção, comercialização,
utilização e pesquisa dos agrotóxicos, a subcomissão criada especialmente para
estudar o tema concluiu que o ideal é que esses produtos parem totalmente de
ser usados na agricultura do país.
O deputado Padre João (PT-MG), autor do relatório,
conta, nessa entrevista, as falhas que os parlamentares encontraram na
legislação brasileira, as contradições nos discursos dos defensores dos
agrotóxicos e as alternativas ao uso desses venenos, vistas de perto pelos
deputados.
A entrevista é da Escola Politécnica de Saúde
Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) e publicada na página da Fiocruz. Eis a entrevista.
O relatório da subcomissão especial sobre o uso de
agrotóxicos e suas consequências à saúde aponta que quando se fala de
substâncias tóxicas, como os agrotóxicos, não há como suprimir o risco
envolvido na utilização desses produtos, apenas reduzi-lo a níveis aceitáveis.
O Brasil hoje utiliza agrotóxicos de forma a reduzir os riscos a níveis
aceitáveis?
Infelizmente não. E esse é um aspecto muito
delicado, porque estamos falando de algo que está sendo ingerido junto com
nossa alimentação. Não temos o controle sobre o uso dos agrotóxicos nem na
produção, nem na comercialização, muito menos na utilização desses venenos, que
é feita intensamente no campo e até mesmo nas cidades, onde existem as tais
capinas químicas (método de controle da vegetação com o uso de agrotóxicos).
Então, os agrotóxicos atingem diretamente o campo e a cidade e, indiretamente,
toda a população brasileira na forma de resíduos nos alimentos.
Qual a dimensão do risco que a população brasileira
está correndo?
Infelizmente somos os campeões no consumo de
agrotóxicos, e esse título não gostaríamos nunca de carregar. Levando-se em
conta toda a América Latina, 80% de todo o agrotóxico é consumido aqui no
Brasil, apesar de haver outros países vizinhos com produção agropecuária, como
a Argentina. Trata-se de um grande problema que nós temos no dia-a-dia e a
população não tem clareza desse risco.
O pessoal do agronegócio e, infelizmente, alguns
setores da academia insistem em dizer que não há problema em utilizar
agrotóxicos. Mas precisamos pensar: recomendamos às pessoas que comam frutas,
porque elas têm miligramas de vitaminas e nutrientes. Apesar de serem pequenas
partículas dentro de uma fruta, esses nutrientes são importantes para o
organismo. Uma laranja, por exemplo, tem alguns miligramas de vitamina C. É
algo pequeno, mas isso tem efeito positivo para a saúde das pessoas, mesmo que
seja a médio e longo prazo.
Agora, quando pensamos em termos de resíduos dos
agrotóxicos, também estamos falando de partículas pequenas que são consideradas
toleráveis. Porque vamos acreditar que, após 30, 40 anos de ingestão, esses
resíduos não causam impacto negativo em nossa saúde, da mesma forma que os
miligramas de nutrientes das frutas exercem impacto positivo? É um absurdo a
própria academia insistir na tese de que há níveis toleráveis de agrotóxicos e
que essas quantidades não têm efeito negativo em nossa saúde, se nós ingerimos
alimentos com diversos tipos de agrotóxicos e tudo isso se reúne em nosso
organismo.
O relatório fala das dificuldades em comprovar a
relação entre o uso de agrotóxicos e o surgimento de doenças, apesar de várias
evidências. A subcomissão realizou uma ausculta pública na cidade de Unaí (MG),
onde são diagnosticados cerca de 1.260 casos de câncer por ano em cada 100 mil
pessoas, enquanto a média mundial não ultrapassa 400 casos. Ainda são
necessárias novas evidências da relação de causa e efeito entre o uso de
agrotóxicos e doenças como o câncer e outras?
Nós temos algo bem evidente. Vimos situações,
sobretudo no Noroeste de Minas Gerais, na região de Unaí, de pessoas que
perderam um rim. Quando essa intoxicação por agrotóxicos é direta ou aguda, ela
apresenta um efeito nítido que provoca a perda do rim, além de problemas na
pele e outras doenças.
Mas o grande problema são os efeitos a médio e
longo prazo, sobretudo para quem tem essa convivência ainda maior, embora todos
nós sejamos atingidos quando ingerimos os alimentos. Os defensores dos
agrotóxicos insistem em dizer que não existe essa relação entre esses venenos e
as doenças, mas isso ficou muito claro para nós da subcomissão nas regiões onde
há utilização em grande escala e muito concentrada dos agrotóxicos, como no
Noroeste de Minas Gerais, na região do Jaíba (Norte de Minas Gerais), em Lucas
do Rio Verde (GO), em Mato Grosso e em Petrolina (PE).
Está claro que o índice de câncer nessas regiões
está muito maior do que o índice mundial, então, o nexo causal é muito
evidente. Outro grande problema que percebemos é que existe um lobby muito
forte sobre os próprios profissionais de saúde para que eles não registrem os
casos de intoxicação. Temos depoimentos do Leste de Minas Gerais informando que
uma pessoa morreu intoxicada por agrotóxicos em uma lavoura de café, e no atestado
de óbito constou como infarto. É possível que haja responsabilização criminal em
casos como esse?
É importante destacar que se trata de um crime. Por
isso, temos propostas de projetos de lei e, entre eles, um projeto que tipifica
essa subnotificação do profissional de saúde como uma infração sanitária grave.
A punição recairia, nesse momento, sobre o profissional de saúde porque é dele
que parte a prova. Daí, seria desencadeada uma série de outros processos, mas,
sem essa prova, ficamos nesse dilema.
Então, a raiz do problema é a subnotificação. Se
reduzirmos isso, vamos ter dados precisos e poderemos envolver todos os
responsáveis - o proprietário da lavoura, quem vendeu o agrotóxico sem
orientação, as empresas produtoras. Hoje, temos um quadro de subnotificação
generalizada. Infelizmente, falta capacitação para os médicos e enfermeiros.
Apenas agora, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), junto ao
Ministério da Saúde, fará a capacitação com formação à distancia para cerca de
400 profissionais de saúde. A previsão é que essa formação seja ampliada a cada
semestre, mas ainda assim falta capacitação na própria academia, na grade de
formação dos cursos dos profissionais de saúde.
Após a conclusão dos trabalhos da subcomissão é
possível avaliar se a legislação brasileira é muito permissiva aos agrotóxicos
ou se o problema está mesmo no descumprimento da legislação vigente? Ela é permissiva no que diz respeito aos
incentivos, como a isenção de impostos. Há uma política de incentivo ao uso de
agrotóxicos baseada na tese do abastecimento, do Brasil como celeiro do mundo.
Com uma visão muito equivocada de segurança alimentar, como se segurança
alimentar fosse apenas quantidade e não visasse também qualidade, essa tese
leva a essa quantidade de isenções.
Por outro lado, as legislações que existem sobre
pulverização aérea, por exemplo, e o próprio receituário agronômico não são
cumpridas e não há uma fiscalização.
O aparato fiscalizador do nosso país chega a ser
ridículo. Temos 90 técnicos capacitados para isso, somando os profissionais da
Anvisa, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis (Ibama) e Ministério da Agricultura e Pecuária. E dentro desses 90,
menos de 50 efetivamente fiscalizam. Isso para um país continental, onde a
agricultura e a pecuária são muito fortes, não é nada, não dá para atender nem
uma unidade da federação.
Então, temos que aprimorar a legislação. Por isso,
o próprio relatório traz algumas propostas e ainda estamos estudando outras,
porque se viessem todas no bojo do relatório nós teríamos problemas para
aprová-lo por causa do lobby que existe também no próprio Congresso. Mas nada
adiantará se não estruturarmos esse aparato fiscalizador, seja do Meio Ambiente
- e aí seria o Ibama e a Agência Nacional das Águas (ANA), que não tem nenhum
controle e nenhuma informação sobre a contaminação das águas pelos agrotóxicos
-, seja da Saúde, com a Anvisa e também no campo da saúde do trabalhador, além
do próprio Ministério da Agricultura e Pecuária.
Os fiscais do Ministério do Trabalho não têm
nenhuma capacitação para lidar com a contaminação dos trabalhadores e a
qualidade de vida deles em relação aos agrotóxicos. Também em relação à
fiscalização, sugerimos que o receituário agronômico tenha cinco vias, ao invés
das duas que possui atualmente, de maneira que uma via seja enviada
obrigatoriamente para os governos dos estados e outra para o governo federal.
Já existe uma lei sobre a necessidade do receituário, mas ela não foi bem
regulamentada e, por isso, estamos propondo novos projetos de lei, para que a
fiscalização funcione de fato e possamos penalizar quem se omitir nas
informações.
No relatório, a subcomissão observa também que,
apesar dos riscos, as autoridades brasileiras acreditam que os benefícios
advindos dos agrotóxicos na produção agrícola superam os malefícios. Como
superar esse pensamento?
Esse pensamento está no bojo dessa tese: ‘agora
chegaremos a 7 bilhões de seres humanos, então, temos que produzir alimentos e
não há como produzir hoje sem agrotóxicos'. E isso não é verdade. Se, de um
lado, a maioria pensa assim, tem outra parte que pensa diferente e já vem, na
prática, buscando a superação do uso dos agrotóxicos.
Durante as audiências públicas e as visitas,
fizemos questão de ir também em áreas de produção orgânica, que estão
produzindo com qualidade e regularidade e cuja produção hectare/ano está
superando aquelas que utilizam os agrotóxicos, até em produções como a de
cana-de-açúcar. Recebemos proprietários de grandes usinas, que estão produzindo
mais de 120 toneladas hectare/ano de cana, em uma média de 100 hectares.
Visitamos também a fazenda Malunga, no entorno de Brasília, e pudemos constatar
a produção em grande escala que é feita lá, com mais de 100 trabalhadores,
produzindo sem agrotóxicos.
Então, esse pensamento das autoridades brasileiras
é consequência de uma cultura que veio ganhando espaço através das
universidades desde a década de 1970, com a superação das sementes criollas,
tudo muito bem montado pelas multinacionais. São as mesmas empresas que já
conhecemos, como Monsanto, Syngenta e Dow, cuja força nas universidades desde a
década de 1970 violentou a agricultura tradicional e familiar, levando a uma
ruptura cultural violenta. As próprias empresas de assistência técnica também
ficaram reféns dessas multinacionais dos agrotóxicos.
Eu não estava no Congresso na legislatura passada,
mas nossos deputados e senadores foram enganados quando aprovaram os
transgênicos, com o discurso que iriam reduzir o uso dos agrotóxicos. Essa era
a tese do agronegócio, uma mentira. Hoje, dobramos o consumo de agrotóxicos e,
mesmo quem produz transgênicos, precisa utilizar agrotóxicos e em grande
escala. Enganaram o Congresso.
Que políticas públicas seriam necessárias para que
outro tipo de agricultura fosse potencializada no país? Nós já fizemos algumas
recomendações ao governo federal, reforçamos, por exemplo, a necessidade de
avançar na pesquisa e na assistência técnica para a produção agroecológica
porque quando dizem não dá para produzir sem veneno, na verdade, o que falta é
assistência técnica porque toda a assistência e toda a pesquisa estão voltadas
para a produção com agrotóxicos.
É lamentável quando visitamos algumas áreas e os
próprios agricultores estão fazendo experimentos sem o uso de agrotóxicos. Não
cabe ao agricultor fazer experimentos, cabe ao Estado Brasileiro propiciar isso
através das empresas de pesquisa e garantir ao agricultor uma assistência
técnica para dar segurança para aquele investimento que ele está fazendo.
É lamentável que apenas 22% dos produtores rurais
do país tenham assistência técnica. Outro dado importante é que em algumas
áreas rurais os índices de analfabetismo chegam a 25%. Então, um público com
alto percentual de analfabetismo, sem assistência técnica, está lidando com
veneno no dia-a-dia. São trabalhadores e trabalhadoras reféns dessas
multinacionais.
Por isso, além de avançar na assistência técnica,
temos também que aumentar os impostos para essas empresas, porque trazem
prejuízos à saúde, ao Sistema Único de Saúde (SUS), à Previdência Social. São
muitos trabalhadores obrigados a se aposentar de maneira prematura. Portanto,
os agrotóxicos trazem grande prejuízo para o povo brasileiro e, ainda assim,
recebem incentivos. Temos que dar incentivo é para a produção agroecológica,
que produz alimentos que garantem saúde e vida para o povo. Infelizmente, a
produção agroecológica não tem incentivo.
A Revista Veja publicou recentemente uma matéria
com o título ‘A Verdade sobre os agrotóxicos'. A publicação diz que esses
produtos não representam riscos à saúde. Além disso, utilizando como fonte o
coordenador geral de agrotóxicos do Ministério da Agricultura, Luís Eduardo
Rangel, a revista afirma que o registro dos agrotóxicos no país é muito caro. O
que o relatório aponta sobre isso?
Essa matéria da Veja não me espanta. É ridícula e
não corresponde à realidade da vida, dos trabalhadores do campo e do povo
brasileiro. O valor pago pelo registro no Brasil é irrisório se compararmos com
o custo do registro nos Estados Unidos, por exemplo. Inclusive, estamos com
projetos para aumentar o valor da taxa, tanto para o registro, quanto para a
avaliação. E exigimos também a reavaliação dos agrotóxicos a cada cinco anos.
Atualmente, o produto fica registrado por um tempo indeterminado e não tem
acompanhamento dos riscos para determinar se ele precisa ser retirado ou não do
mercado.
O relatório apresenta também dados sobre a
destinação final das embalagens dos agrotóxicos. Qual a dimensão desse problema?
Esse é um problema muito grave. Os dados que as empresas apresentaram de
retorno das embalagens vazias de agrotóxicos não correspondem à verdade. O
Instituto Nacional de Processamento de Embalagens Vazias (Inpev), fundado pelas
próprias empresas, trabalha com um número bem menor do que o total das empresas
de agrotóxicos no Brasil. Eles trabalham com menos de 100 empresas, e, no
total, são 136 com registro no país.
Outro problema sério é quando o estabelecimento
comercial obriga o agricultor a assinar um termo de compromisso que o
responsabiliza pela entrega da embalagem no posto de recolhimento estipulado
pelas empresas. Muitas vezes, esse posto está distante 300 quilômetros da
propriedade rural. Tem estado com apenas um posto de coleta.
Então, é algo totalmente precário, recolhem o
mínimo e insistem que coletam 94% das embalagens. E essa embalagem não coletada
é reutilizada na própria lavoura, como eu disse anteriormente, pelo problema do
analfabetismo e da falta de orientação. De forma inocente, as pessoas
reutilizam as embalagens para uso doméstico, em currais, e até para armazenar
alimentos.
Outro apontamento do trabalho da subcomissão é uma
maior integração entre os setores responsáveis pela fiscalização dos
agrotóxicos e os órgãos estaduais. Mas sabemos que há um pensamento
predominante de defesa do agronegócio e de métodos deste modelo de produção que
tem se mostrado prejudiciais à saúde humana e ambiental. Como potencializar a
fiscalização dos agrotóxicos diante desse quadro de governos que defendem as
práticas do agronegócio?
Só vamos ter essa realidade quando a população
tomar consciência de que ela está sendo envenenada a cada dia. Nesse sentido,
eu saúdo o cineasta Silvio Tendler que, com o filme ‘O Veneno está na mesa ',
aborda essa realidade. A população é tem que criar essa consciência coletiva e
dar um basta. Não dá para esperar isso dos governos e dos políticos porque
essas empresas também financiam campanhas políticas.
No próprio Congresso, a maioria está em defesa do
agronegócio, que não abre mão da utilização de veneno na produção de alimentos.
E é lamentável quando temos uma mesma empresa que mata o povo com uma mão e dá
o remédio com a outra. A Bayer, por exemplo, ao mesmo tempo que fabrica
venenos, também produz medicamentos. Essa legislação precisa ser revista com
urgência.
A conclusão do relatório aponta que o ideal seria o
banimento total dos agrotóxicos e que isso pode acontecer a médio e longo
prazo. De que forma isso pode ser feito? Eu não posso dizer que essa mudança
será em 10 ou 20 anos, mas acredito e vou lutar por ela. Quem diria que a
Alemanha daria um basta à energia nuclear, com a meta de em 2020 não ter
nenhuma usina nuclear funcionando? E justo em um país que não tem
disponibilidade solar e de recursos hídricos, mas está criando condições para
ter energia renovável.
Eu acredito que um país como o nosso, com terra
fértil, água e com tantos experimentos bem sucedidos na produção agroecológica,
conseguirá alimentar não só os 200 milhões de brasileiros, mas dar uma grande contribuição
para todos os outros continentes na produção de alimentos que vão garantir
saúde e vida para o povo.
Hoje, a grande produção está enganando a população,
porque a pessoa compra pimentão, mas está comprando pimentão mais veneno. E
muitos ainda não têm a clareza de que não basta apenas lavar o alimento. Isso
retira apenas o resíduo externo, não o veneno, que está impregnado no alimento.
Precisamos de uma posição do governo federal, junto com o Congresso, para banir
de vez a utilização de agrotóxicos.
Por isso, é urgente avançarmos na pesquisa e na
assistência técnica para produção agroecológica. As indicações da subcomissão
já foram encaminhadas aos diversos setores do poder público. Agora, iremos
trabalhar cada uma delas fazendo gestões nos ministérios para os quais foram
feitas as recomendações, além da Secretaria Geral da Presidência da República e
da Casa Civil. O que nos alegra é que o próprio secretário geral da Presidência
da República, Gilberto Carvalho, cultiva uma produção agroecológica em seu
sítio e tem essa consciência.
Esperamos buscar dentro do próprio governo pessoas
que tenham essa consciência e possam entrar nessa luta. A Fiocruz, a Anvisa,
algumas universidades que já estão comprometidas, os movimentos sociais, todos
são estratégicos. Temos que unir o campo e a cidade para criarmos as condições
para a superação do uso de agrotóxicos, já que nossa vida depende do que
comemos e bebemos.